Introdução
Nem todas as nossas perguntas têm uma resposta direta, no Novo Testamento, e nem todas as situações que surgiriam em décadas, séculos e milênios subsequentes foram antecipadas no Novo Testamento. E algumas das preocupações que figuram no horizonte do Novo Testamento parecem um pouco distantes de nossa realidade de igreja hoje.
Como lidar com o que se afastaram? Temos, no Novo Testamento, o lamento de Paulo diante do fato de que “todos os da Ásia me abandonaram” (2Tm 1.15), mas nenhuma indicação de que ele esperava que voltassem ou que ele poderia fazer algo para que isso ocorresse. E, em 1João 2.19, o apóstolo afirma que os anticristos “saíram de nosso meio”, para imediatamente acrescentar: “mas não eram dos nossos”. Se não eram dos nossos, é claro que ele não espera que voltem. Trata-se de um grupo cismático. Não há um texto do NT que diga: Que bom que vocês estão de volta! Portanto, salvo equívoco, não vejo muitas instruções mais específicas sobre “trazê-los de volta”. Um grande texto, no Novo Testamento, é a “parábola da ovelha extraviada”, em Mateus 18.12-14. Como prevejo que esse texto será extensamente abordado ao longo de palestras, opto por não escolhê-lo.
Mas com certeza existem situações correlatas ou parecidas, das quais se possa extrair algum ensino, princípio ou inspiração. Optei por trazer o estudo de um trecho de 2Coríntios, mais especificamente 2Co 1.23— 2.11. É um texto complexo, com muita coisa subentendida. Lida com um caso específico de tratamento pastoral, um conflito entre Paulo e a igreja de Corinto por causa de um membro abusado que tinha ofendido o apóstolo. (No título, optei por chamá-lo de “ovelha negra”, que é uma forma consagrada de se referir ao que é diferente dentro do grupo; mas poderia ser chamado também de “bode”.)
Quero fazer minha reflexão na forma de quatro movimentos: o que está escrito (uma leitura um tanto parafrástica do texto), o que está subentendido (no contexto comunicacional), o que a gente estranha, o que se aprende (ou reaprende).
I. O que está escrito
23 Eu, porém, por minha vida, invoco Deus por testemunha de que foi para poupar vocês que ainda não voltei a Corinto. 24 Não que tenhamos domínio sobre a fé que vocês têm, mas porque somos cooperadores da alegria de vocês. Porque, pela fé, vocês estão firmes. 1 Porque decidi por mim mesmo o seguinte: não voltar a encontrar-me com vocês em tristeza. 2 Porque, se eu entristeço vocês, quem me alegrará, senão aquele a quem tenho entristecido? 3 E escrevi isso para que, quando for, não tenha tristeza da parte daqueles que deveriam alegrar-me, confiando em todos vocês de que a minha alegria é também a alegria de vocês. 4 Porque escrevi para vocês no meio de muitos sofrimentos e angústia de coração, com muitas lágrimas, não para que vocês ficassem tristes, mas para que soubessem do amor que tenho por vocês.
5 Ora, se alguém causou tristeza, não o fez a mim, mas, para que eu não seja demasiadamente áspero, digo que em parte a todos vocês. 6 Basta a esse tal a punição imposta pela maioria. 7 De modo que, agora, vocês devem perdoar e consolar, para que esse indivíduo não seja consumido por excessiva tristeza. 8 Por isso peço que vocês confirmem para com ele o amor de vocês. 9 E foi por isso também que eu lhes escrevi, para ter prova de que, em tudo, vocês são obedientes. 10 A quem vocês perdoam alguma coisa, eu também perdoo. Pois o que perdoei, se é que perdoei alguma coisa, eu o fiz por causa de vocês na presença de Cristo, 11 para que Satanás não alcance vantagem sobre nós, pois não ignoramos quais são as intenções dele.
II. O que está subentendido
Não podemos nos queixar de que não entendemos tudo o que aparece no texto, porque estamos, a rigor, lendo a correspondência dos outros. Os detalhes que mais nos faltam eram os que os coríntios e Paulo conheciam de sobra. Alguns detalhes podem ser recuperados a partir do contexto; outros estão irrecuperavelmente perdidos. Uma provável reconstrução da situação é a que segue:
A certa altura em seu ministério, já depois da escrita de 1Coríntios, Paulo chegou em Corinto, onde foi alvo de um ataque. Certo homem, com certeza membro da igreja, ofendeu o apóstolo Paulo. A identidade do indivíduo é preservada, talvez por razões pastorais (na medida em que a carta se destinava a um público mais amplo, a saber, toda a província da Acaia), talvez por todos saberem de quem se tratava. Exegetas de tempos passados pensavam que era o mesmo indivíduo que foi posto em disciplina em 1Co 5, por ter cometido a ofensa moral de casar com a sua madrasta. É até possível, mas seria em todo caso um novo episódio, em que o ofendido foi Paulo, e não a moral em si. Paulo não especifica (por ser óbvio aos interlocutores) em que consistiu a ofensa. Tudo indica que se tratava de um ataque à autoridade apostólica de Paulo. Como se pode imaginar, aquele ataque a Paulo foi um momento tenso e triste. Acrescente-se a isto o fato de que os coríntios fizeram de conta que não era com eles, o que acabaria levando Paulo, em 2Coríntios, a questionar essa posição de aparente e suposta neutralidade. Não saíram em defesa de seu pastor, talvez por entender que era uma questão estritamente pessoal ou porque não “estivessem nem aí”.
Paulo foi embora, anunciando que iria para a província da Macedônia (no norte da Grécia) e que voltaria a Corinto. No entanto, Paulo alterou os planos de viagem e, ao que tudo indica, foi diretamente – de navio – a Éfeso, dando aos coríntios mais motivos para acusá-lo de leviandade, ou seja, de ser volúvel. Mas Paulo não deixou por isso mesmo. Não abriu mão de sua responsabilidade pastoral. Escreveu uma carta (que poderia dar mais motivos de queixa aos coríntios, que julgavam a presença pessoal dele fraca, e as cartas pesadas). Essa carta, conhecida como “carta das lágrimas”, se perdeu, embora tenha surtido efeito. Nela, Paulo pedia que a igreja tomasse uma atitude, na forma de punição. E puxava as orelhas de toda a igreja. Essa “carta das lágrimas” foi levada, ao que tudo indica, por Tito. E a maioria, arrependida, aplicou uma penalidade. Que maioria era essa? Houve votação? Nada é dito sobre uma minoria, tanto assim que essa “maioria” poderia ser outro nome para a igreja como um todo. Mas, se houve uma minoria, não se sabe se queria uma punição mais severa ou mais branda. Que punição foi aplicada? Não sabemos, mas os envolvidos no diálogo sabiam. Talvez fosse a “pequena excomunhão”, ou seja, a vedação de acesso à ceia do Senhor. A punição surtiu efeito, e agora Paulo temia o pior, porque a igreja de Corinto (segundo Tito informava a Paulo) radicalizou. Se, no início, não se importaram ou não queriam agir, agora se mostravam inflexíveis. Qual era o resultado que Paulo temia, não sabemos. Há quem pense que Paulo temia que o sujeito fosse se suicidar, embora também seja possível que, por excessiva tristeza, acabasse caindo na indiferença. Sob qualquer hipótese, era um dano que teria de ser evitado. Por isso, entre outras razões, para superar de vez o conflito com a igreja, Paulo escreve esta que viria a ser conhecida como 2Coríntios. O apóstolo diz que é hora de revogar a punição (basta!), perdoar, encorajar, confirmar o amor. O perdão dos cristãos de Corinto é também o perdão de Paulo. O que menos interessa é a reputação pessoal do apóstolo; o que mais interessa é o bem-estar da igreja. E, acima de tudo, que Satanás não alcance vantagem sobre nós, “pois não ignoramos quais são as intenções dele”. Que vantagem satânica seria essa, meu caro apóstolo? E quais são as intenções satânicas que o senhor não ignora, mas deixou de explicitar para nós? A menos que alguém tenha uma resposta mais direta de Paulo, me aventuro a responder assim: a não solução de um conflito (ou de um problema), pela indiferença em relação a ele, é algo que está “do jeito que o diabo gosta”. E, num segundo momento, a “amputação irreparável de um membro” do corpo de Cristo é outra situação “do jeito que o diabo gosta”.
III. O que se estranha
1. Encontramos aqui um Paulo cordato, especialmente se comparado com suas manifestações mais intempestivas em outros escritos e também em 1Coríntios 5. Aqui faz questão de dizer que não é senhor sobre a fé, mas cooperador da alegria. Também fica claro que ele não partiu para a confrontação; fez uma retirada estratégica, por mais que isso tivesse dado ensejo a críticas dos coríntios. Mas Paulo também não decidiu simplesmente “dar tempo ao tempo”. Bem instalado em sua oficina de fazedor de tendas, tratou de abordar a questão através de uma carta (confirmando a acusação de que escrever cartas era o forte dele).
2. Encontramos também um pastor positivo, otimista. É claro que, no instante em que estava selando a reconciliação com a igreja, Paulo não poderia duvidar da fé dos cristãos de Corinto, embora desse para perguntar se ele ousaria duvidar da fé dos cristãos em qualquer (ou em outra) circunstância. Paulo parte do pressuposto de que eles têm fé. Paulo não se deixou dominar pela amargura, preferindo ser cooperador da alegria a vítima da tristeza, por mais que a tenha sentido. Quando se está num conflito, sentindo-se injustiçado, é muito difícil agir com amor. A gente gostaria mesmo é aumentar a tristeza dos outros (como forma de retaliação), fazer com que sofram. Ao dizer “se é que perdoei alguma coisa” (v.10), Paulo não revela falta de memória (ou amnésia), mas desprendimento e objetividade. Exegetas apontam para o fato de que Paulo não levou a ofensa para o lado pessoal (o que revela um enfoque objetivo, algo muito difícil quando se é parte envolvida) e também não se preocupou com a sua reputação, e sim com a integridade espiritual da igreja e do cristão ofensor que estava em disciplina. No entanto, uma ofensa ao embaixador era equivalente a uma ofensa àquele que o enviou. (Não se pode protestar lealdade ao que constituiu o embaixador e ao mesmo tempo escorraçar o que foi enviado.)
3. Há mais elementos estranhos nesse texto e naquela situação. Numa época em que, no meio evangélico, a tendência é “fazer pesquisa de preços”, transitando de igreja em igreja; numa época em que, excomungado aqui, alguém poderia em questão de dias virar diácono da igreja do outro lado da rua, a gente estranha que uma punição tenha sido imposta e que ela tenha tido um efeito (aparentemente) tão devastador. Com certeza, ser excluído da igreja ou “posto de molho” era algo bem mais sério numa cultura de honra (e vergonha) e numa situação em que não havia outra denominação cristã disponível. [E ainda é algo bem mais complicado em pequenas comunidades, onde todo mundo conhece todo mundo.] Quando se vê a igreja como um “clube” ao qual nos filiamos, e não uma família na qual renascemos, facilmente encontramos a opção de nos filiarmos a outro “clube”, se não nos quiserem aqui. Alguém fez o seguinte comentário: Paulo nunca teria concordado com os caroneiros eclesiásticos de hoje, que querem viajar de graça, muito menos teria apoiado os consumidores da McIgreja que vão a uma igreja para ouvir a pregação, mandam os filhos a outra igreja para que participem do grupo de jovens, participam dos pequenos grupos de estudo em outra igreja – gente que vive descompromissada, sem responsabilidade, sem disciplina, sem participação na mesa do Senhor.
4. Se os coríntios não sabiam quando deviam parar de punir, nós não sabemos quando devemos começar a punir.
5. Outra surpresa é esta: Quando seria de esperar que Paulo dissesse: “Eu já perdoei, tratem de perdoar também,” ele diz: “a quem vocês perdoam alguma coisa, eu também perdoo”.
6. Paulo toca num tema que é recorrente em 2Coríntios: tudo se processa coram Christo. Quando menos se espera, aparece um triângulo: o pastor, a igreja, e Cristo (e Deus).
7. Há uma sensível diferença entre este texto e 1Coríntios 5 também na referência a Satanás. Enquanto na primeira carta Paulo pede que o incestuoso seja “entregue a Satanás”, aqui, em 2Coríntios, ele quer evitar que Satanás meta a sua colher na vida da igreja. Alguém disse: “Se eles o deixassem cozinhando a sua tristeza em banho-maria, eles acabariam chamuscando o próprio bem-estar espiritual, e Satanás estaria mais do que nunca metendo a sua colher na vida de igreja”.
IV. O que se aprende (ou reaprende)
1. O conceito de corpo de Cristo é fundamental, por mais estranho que pareça hoje (como parecia aos coríntios daquele tempo). Os coríntios entenderam que o ofensor tinha atingido unicamente Paulo; Paulo insiste que a tristeza causada a ele era de todos. O que parecia uma situação em que Paulo corria risco é apresentado por Paulo como uma situação em que os maiores prejudicados poderiam ser os cristãos de Corinto. Assim também a alegria de Paulo era a alegria de todos os cristãos. O perdão que os cristãos de Corinto estenderiam ao ofensor arrependido seria o perdão de Paulo também (v.10). Isso está muito longe da noção de que cada um deve cuidar de sua própria vida espiritual ou que é tudo “entre mim e Deus” e não interessa a mais ninguém. Paulo se preocupa com a igreja em seu todo, e não apenas com o bem-estar daquele indivíduo. A noção de corpo ou comunidade é fundamental. (A “disciplina eclesiástica” não é apenas uma questão que envolve um indivíduo e seu pastor, como fica claro no que Paulo escreve em 2Co 7.)
2. Paulo aponta uma espécie de modus faciendi. Punição, sim, mas não como o fim da linha (como os coríntios imaginavam). Depois da punição e do arrependimento, perdão, consolo (ânimo) e confirmação do amor. Se já é difícil propor isto, mais difícil ainda é alguém aceitar o proposto.
3. Um conflito na igreja (e a necessidade de disciplinar alguém) nunca é um simples conflito, mas também uma batalha espiritual. Há quem tenha muito a ganhar com situações não resolvidas ou com radicalismos legalistas que desconhecem o perdão e a confirmação do amor. Há uma diferença entre punir para que haja reparação ou compensação e punir com vistas a arrependimento e restauração.
Conclusão
Um pouco antes do texto em estudo, em 2Co 1.12, Paulo diz: “Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência de que com simplicidade [franqueza? - haplótes] e sinceridade [eilikrineia] de Deus, não com sabedoria humana, mas, na graça divina, temos vivido no mundo, especialmente em relação a vocês”. Paulo afirma pautar-se pela simplicidade (isto é, sem jogo duplo, sem duas caras) e com sinceridade (isto é, com tudo às claras, com transparência). Ter um norte seguro, sem tergiversar, e primar pela transparência: este parece um procedimento indispensável para lidar com o povo da igreja. Paulo coloca isto em prática, no episódio que estudamos. Há que ter coragem para tanto. E Paulo não se cansa de repetir que tal coragem (parresia) não lhe falta.
Ao professor Dr. Vilson, o nosso muito obrigado pelo texto disponibilizado.
Nem todas as nossas perguntas têm uma resposta direta, no Novo Testamento, e nem todas as situações que surgiriam em décadas, séculos e milênios subsequentes foram antecipadas no Novo Testamento. E algumas das preocupações que figuram no horizonte do Novo Testamento parecem um pouco distantes de nossa realidade de igreja hoje.
Como lidar com o que se afastaram? Temos, no Novo Testamento, o lamento de Paulo diante do fato de que “todos os da Ásia me abandonaram” (2Tm 1.15), mas nenhuma indicação de que ele esperava que voltassem ou que ele poderia fazer algo para que isso ocorresse. E, em 1João 2.19, o apóstolo afirma que os anticristos “saíram de nosso meio”, para imediatamente acrescentar: “mas não eram dos nossos”. Se não eram dos nossos, é claro que ele não espera que voltem. Trata-se de um grupo cismático. Não há um texto do NT que diga: Que bom que vocês estão de volta! Portanto, salvo equívoco, não vejo muitas instruções mais específicas sobre “trazê-los de volta”. Um grande texto, no Novo Testamento, é a “parábola da ovelha extraviada”, em Mateus 18.12-14. Como prevejo que esse texto será extensamente abordado ao longo de palestras, opto por não escolhê-lo.
Mas com certeza existem situações correlatas ou parecidas, das quais se possa extrair algum ensino, princípio ou inspiração. Optei por trazer o estudo de um trecho de 2Coríntios, mais especificamente 2Co 1.23— 2.11. É um texto complexo, com muita coisa subentendida. Lida com um caso específico de tratamento pastoral, um conflito entre Paulo e a igreja de Corinto por causa de um membro abusado que tinha ofendido o apóstolo. (No título, optei por chamá-lo de “ovelha negra”, que é uma forma consagrada de se referir ao que é diferente dentro do grupo; mas poderia ser chamado também de “bode”.)
Quero fazer minha reflexão na forma de quatro movimentos: o que está escrito (uma leitura um tanto parafrástica do texto), o que está subentendido (no contexto comunicacional), o que a gente estranha, o que se aprende (ou reaprende).
I. O que está escrito
23 Eu, porém, por minha vida, invoco Deus por testemunha de que foi para poupar vocês que ainda não voltei a Corinto. 24 Não que tenhamos domínio sobre a fé que vocês têm, mas porque somos cooperadores da alegria de vocês. Porque, pela fé, vocês estão firmes. 1 Porque decidi por mim mesmo o seguinte: não voltar a encontrar-me com vocês em tristeza. 2 Porque, se eu entristeço vocês, quem me alegrará, senão aquele a quem tenho entristecido? 3 E escrevi isso para que, quando for, não tenha tristeza da parte daqueles que deveriam alegrar-me, confiando em todos vocês de que a minha alegria é também a alegria de vocês. 4 Porque escrevi para vocês no meio de muitos sofrimentos e angústia de coração, com muitas lágrimas, não para que vocês ficassem tristes, mas para que soubessem do amor que tenho por vocês.
5 Ora, se alguém causou tristeza, não o fez a mim, mas, para que eu não seja demasiadamente áspero, digo que em parte a todos vocês. 6 Basta a esse tal a punição imposta pela maioria. 7 De modo que, agora, vocês devem perdoar e consolar, para que esse indivíduo não seja consumido por excessiva tristeza. 8 Por isso peço que vocês confirmem para com ele o amor de vocês. 9 E foi por isso também que eu lhes escrevi, para ter prova de que, em tudo, vocês são obedientes. 10 A quem vocês perdoam alguma coisa, eu também perdoo. Pois o que perdoei, se é que perdoei alguma coisa, eu o fiz por causa de vocês na presença de Cristo, 11 para que Satanás não alcance vantagem sobre nós, pois não ignoramos quais são as intenções dele.
II. O que está subentendido
Não podemos nos queixar de que não entendemos tudo o que aparece no texto, porque estamos, a rigor, lendo a correspondência dos outros. Os detalhes que mais nos faltam eram os que os coríntios e Paulo conheciam de sobra. Alguns detalhes podem ser recuperados a partir do contexto; outros estão irrecuperavelmente perdidos. Uma provável reconstrução da situação é a que segue:
A certa altura em seu ministério, já depois da escrita de 1Coríntios, Paulo chegou em Corinto, onde foi alvo de um ataque. Certo homem, com certeza membro da igreja, ofendeu o apóstolo Paulo. A identidade do indivíduo é preservada, talvez por razões pastorais (na medida em que a carta se destinava a um público mais amplo, a saber, toda a província da Acaia), talvez por todos saberem de quem se tratava. Exegetas de tempos passados pensavam que era o mesmo indivíduo que foi posto em disciplina em 1Co 5, por ter cometido a ofensa moral de casar com a sua madrasta. É até possível, mas seria em todo caso um novo episódio, em que o ofendido foi Paulo, e não a moral em si. Paulo não especifica (por ser óbvio aos interlocutores) em que consistiu a ofensa. Tudo indica que se tratava de um ataque à autoridade apostólica de Paulo. Como se pode imaginar, aquele ataque a Paulo foi um momento tenso e triste. Acrescente-se a isto o fato de que os coríntios fizeram de conta que não era com eles, o que acabaria levando Paulo, em 2Coríntios, a questionar essa posição de aparente e suposta neutralidade. Não saíram em defesa de seu pastor, talvez por entender que era uma questão estritamente pessoal ou porque não “estivessem nem aí”.
Paulo foi embora, anunciando que iria para a província da Macedônia (no norte da Grécia) e que voltaria a Corinto. No entanto, Paulo alterou os planos de viagem e, ao que tudo indica, foi diretamente – de navio – a Éfeso, dando aos coríntios mais motivos para acusá-lo de leviandade, ou seja, de ser volúvel. Mas Paulo não deixou por isso mesmo. Não abriu mão de sua responsabilidade pastoral. Escreveu uma carta (que poderia dar mais motivos de queixa aos coríntios, que julgavam a presença pessoal dele fraca, e as cartas pesadas). Essa carta, conhecida como “carta das lágrimas”, se perdeu, embora tenha surtido efeito. Nela, Paulo pedia que a igreja tomasse uma atitude, na forma de punição. E puxava as orelhas de toda a igreja. Essa “carta das lágrimas” foi levada, ao que tudo indica, por Tito. E a maioria, arrependida, aplicou uma penalidade. Que maioria era essa? Houve votação? Nada é dito sobre uma minoria, tanto assim que essa “maioria” poderia ser outro nome para a igreja como um todo. Mas, se houve uma minoria, não se sabe se queria uma punição mais severa ou mais branda. Que punição foi aplicada? Não sabemos, mas os envolvidos no diálogo sabiam. Talvez fosse a “pequena excomunhão”, ou seja, a vedação de acesso à ceia do Senhor. A punição surtiu efeito, e agora Paulo temia o pior, porque a igreja de Corinto (segundo Tito informava a Paulo) radicalizou. Se, no início, não se importaram ou não queriam agir, agora se mostravam inflexíveis. Qual era o resultado que Paulo temia, não sabemos. Há quem pense que Paulo temia que o sujeito fosse se suicidar, embora também seja possível que, por excessiva tristeza, acabasse caindo na indiferença. Sob qualquer hipótese, era um dano que teria de ser evitado. Por isso, entre outras razões, para superar de vez o conflito com a igreja, Paulo escreve esta que viria a ser conhecida como 2Coríntios. O apóstolo diz que é hora de revogar a punição (basta!), perdoar, encorajar, confirmar o amor. O perdão dos cristãos de Corinto é também o perdão de Paulo. O que menos interessa é a reputação pessoal do apóstolo; o que mais interessa é o bem-estar da igreja. E, acima de tudo, que Satanás não alcance vantagem sobre nós, “pois não ignoramos quais são as intenções dele”. Que vantagem satânica seria essa, meu caro apóstolo? E quais são as intenções satânicas que o senhor não ignora, mas deixou de explicitar para nós? A menos que alguém tenha uma resposta mais direta de Paulo, me aventuro a responder assim: a não solução de um conflito (ou de um problema), pela indiferença em relação a ele, é algo que está “do jeito que o diabo gosta”. E, num segundo momento, a “amputação irreparável de um membro” do corpo de Cristo é outra situação “do jeito que o diabo gosta”.
III. O que se estranha
1. Encontramos aqui um Paulo cordato, especialmente se comparado com suas manifestações mais intempestivas em outros escritos e também em 1Coríntios 5. Aqui faz questão de dizer que não é senhor sobre a fé, mas cooperador da alegria. Também fica claro que ele não partiu para a confrontação; fez uma retirada estratégica, por mais que isso tivesse dado ensejo a críticas dos coríntios. Mas Paulo também não decidiu simplesmente “dar tempo ao tempo”. Bem instalado em sua oficina de fazedor de tendas, tratou de abordar a questão através de uma carta (confirmando a acusação de que escrever cartas era o forte dele).
2. Encontramos também um pastor positivo, otimista. É claro que, no instante em que estava selando a reconciliação com a igreja, Paulo não poderia duvidar da fé dos cristãos de Corinto, embora desse para perguntar se ele ousaria duvidar da fé dos cristãos em qualquer (ou em outra) circunstância. Paulo parte do pressuposto de que eles têm fé. Paulo não se deixou dominar pela amargura, preferindo ser cooperador da alegria a vítima da tristeza, por mais que a tenha sentido. Quando se está num conflito, sentindo-se injustiçado, é muito difícil agir com amor. A gente gostaria mesmo é aumentar a tristeza dos outros (como forma de retaliação), fazer com que sofram. Ao dizer “se é que perdoei alguma coisa” (v.10), Paulo não revela falta de memória (ou amnésia), mas desprendimento e objetividade. Exegetas apontam para o fato de que Paulo não levou a ofensa para o lado pessoal (o que revela um enfoque objetivo, algo muito difícil quando se é parte envolvida) e também não se preocupou com a sua reputação, e sim com a integridade espiritual da igreja e do cristão ofensor que estava em disciplina. No entanto, uma ofensa ao embaixador era equivalente a uma ofensa àquele que o enviou. (Não se pode protestar lealdade ao que constituiu o embaixador e ao mesmo tempo escorraçar o que foi enviado.)
3. Há mais elementos estranhos nesse texto e naquela situação. Numa época em que, no meio evangélico, a tendência é “fazer pesquisa de preços”, transitando de igreja em igreja; numa época em que, excomungado aqui, alguém poderia em questão de dias virar diácono da igreja do outro lado da rua, a gente estranha que uma punição tenha sido imposta e que ela tenha tido um efeito (aparentemente) tão devastador. Com certeza, ser excluído da igreja ou “posto de molho” era algo bem mais sério numa cultura de honra (e vergonha) e numa situação em que não havia outra denominação cristã disponível. [E ainda é algo bem mais complicado em pequenas comunidades, onde todo mundo conhece todo mundo.] Quando se vê a igreja como um “clube” ao qual nos filiamos, e não uma família na qual renascemos, facilmente encontramos a opção de nos filiarmos a outro “clube”, se não nos quiserem aqui. Alguém fez o seguinte comentário: Paulo nunca teria concordado com os caroneiros eclesiásticos de hoje, que querem viajar de graça, muito menos teria apoiado os consumidores da McIgreja que vão a uma igreja para ouvir a pregação, mandam os filhos a outra igreja para que participem do grupo de jovens, participam dos pequenos grupos de estudo em outra igreja – gente que vive descompromissada, sem responsabilidade, sem disciplina, sem participação na mesa do Senhor.
4. Se os coríntios não sabiam quando deviam parar de punir, nós não sabemos quando devemos começar a punir.
5. Outra surpresa é esta: Quando seria de esperar que Paulo dissesse: “Eu já perdoei, tratem de perdoar também,” ele diz: “a quem vocês perdoam alguma coisa, eu também perdoo”.
6. Paulo toca num tema que é recorrente em 2Coríntios: tudo se processa coram Christo. Quando menos se espera, aparece um triângulo: o pastor, a igreja, e Cristo (e Deus).
7. Há uma sensível diferença entre este texto e 1Coríntios 5 também na referência a Satanás. Enquanto na primeira carta Paulo pede que o incestuoso seja “entregue a Satanás”, aqui, em 2Coríntios, ele quer evitar que Satanás meta a sua colher na vida da igreja. Alguém disse: “Se eles o deixassem cozinhando a sua tristeza em banho-maria, eles acabariam chamuscando o próprio bem-estar espiritual, e Satanás estaria mais do que nunca metendo a sua colher na vida de igreja”.
IV. O que se aprende (ou reaprende)
1. O conceito de corpo de Cristo é fundamental, por mais estranho que pareça hoje (como parecia aos coríntios daquele tempo). Os coríntios entenderam que o ofensor tinha atingido unicamente Paulo; Paulo insiste que a tristeza causada a ele era de todos. O que parecia uma situação em que Paulo corria risco é apresentado por Paulo como uma situação em que os maiores prejudicados poderiam ser os cristãos de Corinto. Assim também a alegria de Paulo era a alegria de todos os cristãos. O perdão que os cristãos de Corinto estenderiam ao ofensor arrependido seria o perdão de Paulo também (v.10). Isso está muito longe da noção de que cada um deve cuidar de sua própria vida espiritual ou que é tudo “entre mim e Deus” e não interessa a mais ninguém. Paulo se preocupa com a igreja em seu todo, e não apenas com o bem-estar daquele indivíduo. A noção de corpo ou comunidade é fundamental. (A “disciplina eclesiástica” não é apenas uma questão que envolve um indivíduo e seu pastor, como fica claro no que Paulo escreve em 2Co 7.)
2. Paulo aponta uma espécie de modus faciendi. Punição, sim, mas não como o fim da linha (como os coríntios imaginavam). Depois da punição e do arrependimento, perdão, consolo (ânimo) e confirmação do amor. Se já é difícil propor isto, mais difícil ainda é alguém aceitar o proposto.
3. Um conflito na igreja (e a necessidade de disciplinar alguém) nunca é um simples conflito, mas também uma batalha espiritual. Há quem tenha muito a ganhar com situações não resolvidas ou com radicalismos legalistas que desconhecem o perdão e a confirmação do amor. Há uma diferença entre punir para que haja reparação ou compensação e punir com vistas a arrependimento e restauração.
Conclusão
Um pouco antes do texto em estudo, em 2Co 1.12, Paulo diz: “Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência de que com simplicidade [franqueza? - haplótes] e sinceridade [eilikrineia] de Deus, não com sabedoria humana, mas, na graça divina, temos vivido no mundo, especialmente em relação a vocês”. Paulo afirma pautar-se pela simplicidade (isto é, sem jogo duplo, sem duas caras) e com sinceridade (isto é, com tudo às claras, com transparência). Ter um norte seguro, sem tergiversar, e primar pela transparência: este parece um procedimento indispensável para lidar com o povo da igreja. Paulo coloca isto em prática, no episódio que estudamos. Há que ter coragem para tanto. E Paulo não se cansa de repetir que tal coragem (parresia) não lhe falta.
Ao professor Dr. Vilson, o nosso muito obrigado pelo texto disponibilizado.